Porque uma milha náutica tem 1852m?

Porque aviões não marcam velocidade em Km/h?

Você sabe porque os aviões e navios usam a marcação de velocidade em Nós ao invés de Km/h, como nos automóveis? Veja no excelente artigo abaixo:

A terra, a milha e o nó

I. A milha náutica

Historicamente, a milha náutica foi definida como o comprimento de um arco de meridiano (direção norte-sul) correspondente a um minuto de arco. A definição internacional da milha marítima, baseada em determinações mais rigorosas, foi adotada em 1929 pela I Conferência Hidrográfica Internacional Extraordinária (First International Extraordinary Hydrographic Conference), realizada em Mônaco, e fixada exatamente em 1852 m (BIPM, 2006). A milha náutica é, desde então, denominada milha marítima internacional; antes dessa data, existiam diferentes definições, com valores ligeiramente diferentes entre si.

De onde vieram estes 1852 m? A milha náutica (que passou a ser designada como milha marítima internacional) corresponde à distância medida sobre a superfície terrestre por cada minuto de latitude, ou de longitude (ver nota final 1), que nos desloquemos. Na verdade, medindo os raios equatorial da Terra 6378,137 km e o polar 6356,752 km, obtemos um raio terrestre médio de 6367,444 km. Na Terra, a diferença entre o raio polar e o raio equatorial vale apenas 21,385 km, o que representa 0,336% do raio terrestre médio (FERREIRA; ALMEIDA, 2003).

Por isso, em primeira aproximação, podemos tomar a Terra como uma esfera com o raio médio de 6367,444 km. Usando esse raio terrestre médio, e assumindo a Terra como uma esfera, o seu perímetro vale

P = 2 π R = 2 x 3,1416 x 6367,444 = 40007,834 km.

Esses 40007,834 km correspondem a uma circulação completa em torno do globo (360o), ou seja, uma volta ao mundo segundo um círculo máximo; em outras palavras, ao longo do equador ou segundo um meridiano qualquer (pois todos os meridianos são círculos máximos). Fazendo as contas para cada grau, obtemos

40007,844 km / 360= 111,133 km.

Podemos ver que, em média, um arco de 1o na superfície da Terra corresponde a cerca de 111 quilômetros. Calculando a distância que corresponde a cada minuto de arco (‘), e como 1o = 60′, ou seja, 1′ = (1/60)o, concluímos facilmente que 111,133 km/60′ = 1,8522 km por cada minuto de arco, ou seja, 1852,2 m (é por isso que a milha tem o valor referido). E qual é, afinal, a vantagem de se utilizar uma unidade (à primeira impressão) assim tão estranha?

II. Vantagens da definição da milha marítima internacional

No âmbito da navegação marítima e aérea, a milha marítima internacional (que, para simplificar, abreviaremos para “milha náutica” ou “milha marítima”) é uma unidade de distância muito conveniente por poder ser medida diretamente sobre os mapas e as cartas náuticas, independentemente da sua escala, utilizando o minuto de meridiano como unidade: daí a persistência do seu uso. Os resultados anteriores significam que:

  1. O deslocamento de uma milha, em um navio a navegar na direção norte-sul (ou seja, ao longo de um meridiano), traduz-se automaticamente em uma variação de latitude de 1 minuto de arco; se avançarmos 60 milhas, a nossa latitude terá variado um grau. Do mesmo modo, navegando ao longo do equador, a cada milha percorrida, a longitude do nosso navio terá se alterado em um minuto de arco; se o percurso for de 60 milhas, a longitude se altera em um grau.
  2. Por outro lado, raciocinando no sentido inverso, uma variação de latitude de 1′, na posição do navio, significa que avançamos uma milha para norte ou para sul; uma variação de 1o significará que avançamos 60 milhas. Se viajarmos ao longo do equador, por cada minuto de variação da longitude na nossa posição, teremos navegado uma milha para leste ou para oeste; e 60 milhas a cada grau.

Representação do comprimento do arco de meridiano (1 milha) correspondente ao ângulo de 1 minuto. Esquema fora de escala, para maior clareza.

 

Contudo, se fosse utilizado o quilômetro, teríamos de fazer contas menos práticas, pois 1 km à superfície da Terra significa um arco de 0,5399568′. Vê-se, assim, uma enorme vantagem: navegando ao longo de círculos máximos, podemos fazer corresponder facilmente as distâncias percorridas, em milhas, com variações das coordenadas locais e vice-versa.

Dado que a altitude a que os aviões comerciais voam (cerca de 11 km) é muito menor do que a medida do raio terrestre, o mesmo raciocínio pode aplicar-se à navegação aérea, pois a distância do avião ao
centro da Terra pouco difere (percentualmente) do raio terrestre médio.

Outra área onde a milha náutica mantém aplicação generalizada é o direito internacional, nomeadamente na fixação das águas territoriais, zonas  econômicas exclusivas (ZEE) e outras distâncias significativas para efeitos jurídicos e econômicos. A generalidade dos tratados internacionais e das convenções sobre direito marítimo utiliza a milha náutica.

A milha náutica é uma unidade que não pertence ao Sistema Internacional de Unidades (SI) e o seu uso é desencorajado em conjunto com grandezas expressas em unidades do SI (BIPM, 2006). Além disso, por ela não ter um símbolo oficial, é comum utilizarem-se símbolos como “M”, “NM”, “nm”, ou “nmi” (na literatura anglo-saxônica) para representá-la. A forma “nm” presta-se a confusão, pois pode confundir-se com o símbolo internacional do nanômetro (1 nm = 0,000 000 001 m). Em português e nas outras línguas latinas, usa-se “mn”, ou “m.n”. Também existe a milha terrestre (ver nota final 2).

Convém tornar claro que, em longitude, uma milha marítima internacional só corresponde a um minuto de arco no equador (pois esse é o único círculo máximo na direção leste-oeste). Dado que qualquer outro paralelo tem menor perímetro do que o equador, se navegarmos para leste ou para oeste à latitude constante φ ≠ 0o, percorreremos um paralelo de raio R cosφ (onde R é a medida do raio terrestre médio e φ designa a latitude do navio). Nesse caso, para cada milha percorrida, a nossa longitude terá variado (1’/cos φ). Por exemplo, à latitude 60o, a cada milha percorrida para leste ou para oeste, a nossa longitude varia 2′, pois cos 60o = 0,50 e 1/cos 60o = 2.

III. A milha marítima e a não esfericidade da Terra

Nas considerações anteriores, supusemos a Terra perfeitamente esférica e tomamos a medida do seu raio médio. Devido ao ligeiro achatamento da Terra, na realidade, um minuto de arco não corresponde a uma medida uniforme (constante) à superfície da Terra: vai aumentando à medida que nos afastamos do equador. Por isso, o comprimento do arco correspondente a um minuto vale, mais precisamente, 1843 m nos pólos e 1861 m no equador (CHASE, 1990).

IV. A milha marítima e o nó

Da definição de milha marítima internacional resulta diretamente uma útil unidade de velocidade: o nó. Por definição, um navio que se desloca à velocidade de 1 nó, percorre uma milha marítima internacional por hora.

1 nó = 1 milha náutica/hora

Daqui resulta uma importante vantagem prática, simplificadora de cálculos: um navio que zarpa à velocidade de n nós, percorre n milhas marítimas internacionais por hora, ou seja percorre n minutos de arco por hora de navegação, desde que o faça ao longo de um círculo máximo. Um navio que “faça” 20 nós, constantemente mantidos, fará 20 milhas por hora, 60 milhas em 3 horas, percorrendo, assim, um grau, ao longo de qualquer círculo máximo, supondo a Terra esférica.

V. Conclusão

Das razões apresentadas ao longo deste artigo, torna-se clara a justificativa para que a milha náutica tenha o valor “irregular” de 1852 m. Vimos a sua utilidade prática para o navegador, bem como as vantagens da unidade de velocidade, em navegação, que lhe está associada, o nó.

Referências bibliográficas
(1) BIPM (Bureau International de Poids et mesures) The International System of Units (SI). Section 4.1 , 8th Edition, Paris, France, 2006.

(2) FERREIRA, M.; ALMEIDA, G. Introdução à astronomia e às observações astronômicas. 7. Ed. Lisboa: Plátano Editora, 2003.

(3) CHASE, C. A. An introduction to nautical science. New York: W.W. Norton, 1990.

(4) Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Mille_international>.

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(1) Para uma definição dos conceitos de latitude e longitude, veja Ferreira e Almeida, 2003,
(p. 67-69).

(2) Os Romanos foram os primeiros a idealizar uma unidade de comprimento (distância) definida com base na anatomia humana. Da Roma Antiga herdamos a primeira milha, que deriva do latim mille passuum, que significa mil passos. Para os romanos, 1 milha correspondia a 1000 passos duplos dados por um centurião, convencionalmente 1479 m, equivalentes a 5000 pés romanos.

Essas medidas não eram rigorosas, pois dependiam do tamanho das pernas do centurião e uma diferença mínima na passada resultava em uma grande diferença no final dos 1000 passos. Em registros históricos, a milha romana variava aproximadamente entre 1401 e 1580 metros. Foi este o primeiro povo a usar uma unidade de longa distância definida deste modo. Por isso ficou conhecida como milha romana.

A milha terrestre moderna, correspondente a cerca de um terço da antiga légua, derivou da milha romana e foi definida com caráter mais científico em 1592, no Parlamento inglês (statute mile), no tempo da rainha Elisabeth I. Valia, então, cerca de 1609 m. Em 1959, foi denominada milha internacional (símbolo mi) e fixada em 1609,344 m (referência 4).

Créditos:

Artigo escrito por Guilherme de Almeida e publicado pelo Caderno Brasileiro de Ensino de Física v. 29, n. 3 (2012), disponível em PDF <neste link>.

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